"This is the peer reviewed version of an article published in the open-access journal Estudos de Religião 20/31 (2006): 88-116. https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/ER Dāna (Dádiva) em religiões do Sul da Ásia: Pressuposições e o lugar de teorias Steven Engler 1 Abstract – This paper analyzes three influential studies of dāna (‘giving’ or ‘charity’) in South Asian religious traditions. After clarifying anthropological and sociological theories of the gift, it argues that a reliance on these ideas has distorted attempts by these and other scholars of religion to make sense of dāna, and of related South Asian social relations and religious motivations. It concludes by underlining the need for the ongoing reflexive refinement of the categories and concepts used by scholars of religion. Resumo - Este artigo trata de três influentes estudos de dāna (‘doação’ ou ‘caridade’) em religiões da Índia. Depois de esclarecer aspetos das teorias antropológicas e sociológicas do dom, ele afirma que 1 Steven Engler é Instrutor em Religious Studies (Ciências da Religião) no departemento de Humanities do Mount Royal College, em Calgary, Canadá (código postal T3E 6K6; < sjengler@gmail.com >) e Professor Visitante (2005-2006) na Pós-Graduação em Ciências da Religião na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brazil, custeado por uma bolsa da 1 a utilização dessas idéias tem atrapalhado tentativas pelos cientistas da religião de interpretar a dāna, as relações sociais, e as motivações religiosas. Ele enfatiza a necessidade do apuro reflexivo e contínuo das categorias e dos conceitos usados pelos cientistas da religião. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Ele agradece a Profa. Dra. Leslie Orr (Concordia University) por orientação nas leituras sobre as religiões do sul da Ásia. 2 Dāna é um conceito-chave nas tradições religiosas do sul da Ásia. Esta palavra pode ser traduzida como “dar”, “generosidade”, “caridade” ou “liberalidade”. Contudo, nenhum destes termos é adequado. O problema de tradução é uma pista para um problema de conceitualização. Estudiosos ocidentais têm considerado a dāna pela ótica enviesadora de categorias e pressuposições inadequadas. Trazer tais pressuposições à luz e tentar uma adaptação é um corolário de qualquer tentativa de estudar uma cultura alheia em termos de suas próprias categorias. O presente paper visa iniciar este trabalho com o conceito de dāna. A despeito do uso de certas definições e distinções que foram evoluídas em teorias antropológicas e sociológicas de relações de dádiva, as linhas estabelecidas para esta discussão por Mauss ainda retêm uma influência excessiva em discussões das religiões do sul da Ásia. Na primeira parte deste paper vou esboçar algumas opiniões antropológicas e sociológicas que tendem a introduzir distorções em estudos de doação em outras culturas. Nas partes 2-4 deste paper, vou considerar três estudos clássicos e ainda influentes das tradições do sul da Ásia em que dāna tem um lugar central: de J.C. Heesterman, “Brahman, Ritual, and Renouncer”(1964); de Romila Thapar, “Dāna and daksina as Forms of Exchange” (1976); e de Ivan Strenski, “On Generalized Exchange and the Domestication of the Sangha” (1983). Cada um fez uma contribuição importante ao estudo da doação religiosa na Índia. Contudo, eles têm certas limitações em comum. Cada um negligencia aspectos importantes das práticas de 3 dāna. Cada um se abastece de teorias ocidentais da dádiva para invocar dicotomias inadequadas que não se sustentam quando uma leque mais abrangente de evidências é levada em consideração. E cada um pressupõe uma separação exagerada entre valores religiosos e mundanos nas culturas do sul da Ásia. Está implícito neste paper que os paralelos fortes entre o jainismo, o budismo e o hinduísmo justificam o tratamento paralelo que eles recebem nesta discussão unificada. A minha opção para tratar de um paper que aborda o do hinduismo, de um que aborda o budista e de um que aborda os dois juntos (Thapar) é motivado por este desejo de abordar o que eles supostamente têm em comum. Faço três constatações específicas. Primeiro, estes estudos impõem dicotomias conceituais nítidas demais para serem justificadas pelas práticas reais do dāna. Segundo, a imposição destas dicotomias é facilitada pela desconsideração do pleno leque de práticas do dāna. Terceiro, cada paper tira conclusões sem justificação sobre as motivações religiosas baseado nas suas análises das relações sociais que são supostamente determinadas por relações de doação. Cada um considera que os valores mundiais e religiosos são divorciados e que eles são sistemas em competição mútua, dentro das tradições religiosas do sul da Ásia. Na realidade, tipos de relações de troca e tipos de motivação religiosa são mais ligados que tais análises sugerem. A proposta deste paper é que nós encontramos distinções onde nós os aplicamos: aplicar as dicotomias conceituais nítidas que são proeminentes no pensamento ocidental, especificamente no estudo acadêmico de religião, resulta numa percepção que culturas não-ocidentais manifestem tais dicotomias nas suas relações sociais, motivações religiosas e concepções de agência. 4 Teoria ocidental da dádiva Uma grande parte do trabalho que foi feito sobre o dāna e sobre a troca em geral nas tradições religiosas do sul da Ásia incorpora certas pressuposições ocidentais que entortam a interpretação. Estudiosos ocidentais restringem a sua consideração de relações de dom em culturas alheias em várias maneiras: considerando somente as trocas materiais, considerando somente relações diádicas entre individuais, assumindo que a troca de dons acontece somente entre pessoas de status social equivalente e contrastando relações de dom com relações monetárias e comerciais. Estas pressuposições remontam em grande parte á influência persistente do Essai sur le don de Marcel Mauss, embora sejam implícitas na tradição intelectual ocidental numa maneira mais geral (Cf. Weiner: 1992, p.44ss). Nesta parte eu esboço primeiro algumas das idéias sobre a troca que evoluíram desde o trabalho de Malinowski e em seguida considero algumas perspectivas sobre dāna que sofrem pela desconsideração destas perspectivas mais evoluídas. Isto deixará o alicerce para uma consideração mais matizada do dāna. O livro de Mauss era em grande parte uma resposta ao trabalho anterior de Malinowski sobre o povo das Ilhas Trobriand. No livro Argonauts of the Western Pacific Malinowski defendeu que a melhor maneira de entender as relações variadas de troca era em termos de “doação” e “contradoação” (1961, p.176ss). Ele chegou a dizer que “every ceremony, every legal and customary act is done to the accompaniment of material gift and counter gift” (1961, p.167).2 Vale a pena observar que Malinowski limita explicitamente a sua discussão a dons materiais. Mauss fez dois acréscimos 2 “Cada cerimônia, cada ato legal e de costume é feito com o acompanhamento de dom e contra-dom materiais”. 5 importantes à discussão de Malinowski. Primeiro, ele defendeu a tese que o tipo de troca recíproca observado por Malinowski podia ser colocado num continuum histórico: [the] principle of the exchange-gift must have been that of societies that have gone beyond the phase of ‘total services’ (from clan to clan, and from family to family) but have not yet reached that of purely individual contract, of the market where money circulates, of sale proper, and above all of the notion of price reckoned in coinage weighed and stamped with its value. (Mauss: 1990, p.46, grifos no original)3 Em segundo lugar, Mauss tentou fornecer uma explicação da motivação subjacente á relação de doação. Defendeu que “things are mixed up with spirits.... things possess a personality” (1990, p.46, 44)4. Na doação, então, a pessoa dá uma parte de si mesmo, e a reciprocidade resulta por causa do espírito que é dado junto com o dom procura voltar para o doador. No ano depois da publicação do livro de Mauss, Malinowski publicou uma contra-constatação que é o costume e não um poder sagrado dentro dos próprios donativos que fornece a motivação para trocas recíprocas (Weiner 1992: 45-46). 3 [o] princípio do dom-troca deve ter sido o de sociedades que já foram além da fase de “serviços totais” (de clã para clã e de família para família) mas ainda não antingiram a do contrato puramente individual, do mercado onde circula o dinheiro, da venda propriamente dita e acima de tudo da noção de preço calculado em moeda pesada e carimbada com seu valor (grifos no original). 4 As coisas misturam-se com os espíritos... as coisas possúem personalidades. 6 Os trabalhos de Malinowski e Mauss iniciaram um longo debate sobre as motivações que estão por trás das trocas mútuas. Este debate pressupunha, contudo, que tais trocas eram materiais, recíprocas, e qualitativamente distintas da transações comerciais. A inadequação destas pressuposições para o entendimento de dāna nas tradições religiosas do sul da Ásia já era antecipada no Essai sur le don. Mauss observou que doar era uma obrigação religiosa no hinduismo mas que existiam fortes restrições sobra a doação e a recepção. Ele interpretou isto como um sinal da natureza perigosa da doação, perigosa porque estabelece um vínculo de dependência forte demais sobre quem dá e quem recebe, ambos. Sejam registradas duas restrições aqui. Primeiro, Mauss, numa obra baseada principalmente em pesquisas antropológicas de campo, limitou-se à consideração de textos védicos, e estes não são a melhor fonte para entender as práticas religiosas do sul da Ásia. Segundo, ele anota que “Concerning the main subject of our analysis, the obligation to reciprocate, we must acknowledge that we have found few facts in Hindu law...”. (1990, p.146n)5 Foi uma exceção a um paradigma que dominou o campo do debate; isto foi o legado principal de Mauss para o estudo da doação religiosa na Índia. Trabalhos mais recentes já foram além de Mauss em várias maneiras. Lévi-Strauss colcoou a discussão da motivação num contexto mais explicitamente social: Goods are not only economic commodities, but vehicles and instruments for realities of another order, such as power, influence, sympathy, status and emotion; and the skilful game 5 Concernente o assunto principal da nossa análise, que é a obrigação de reciprocar-se, temos que reconhecer que descobrimos poucos fatos na lei hindu. 7 of exchange ... consists in a complex totality of conscious or unconscious manoeuvres in order to gain security and to guard oneself against risks brought about by alliances and by rivalries. (1969, p.54)6 G.C. Homans, que era um pioneiro em teorias de troca sociais, defendeu a tese mais geral que, “Social behavior is an exchange of goods, material goods but also non-material ones, such as the symbols of approval or prestige”. (1958, p.606)7 Estas opiniões abrem o caminho para duas outras considerações. Primeiro, relações de dom podem ser encaradas como cumprindo um papel importante em constituir as relações sociais. Questões de poder, status diferenciados, proteção e segurança cumprem nisso um papel importante. Segundo, importa levar em consideração coisas intangíveis tais como influência, prestígio, e mérito como fazendo parte das trocas sociais, incluindo a doação de presentes. Alvin Gouldner defendeu que o comportamento de trocas é governado pelas “normas de reciprocidade” (1975). Gouldner percebeu que as perspectivas funcionalistas falharam em não levar em consideração o quanto os agentes deram mais do que receberam em troca. Defendeu a tese que as trocas recíprocas dão solidez à estruturas sociais e o apelo desta solidez conduz as pessoas a agir reciprocamente baseado numa consciência de obrigação ou na deferência às opiniões dos seus pares: 6 Bens não são somente comodidades econômicas mas veículos e instrumentos para realidades de outra ordem, tais como poder, incluência, simpatia, status e emoção; e o habilidoso jogo das trocas... consiste numa totalidade complexa de manobras conscientes e inconscientes para alcançar a segurança e proteger-se contra os riscos criados por alianças ou por rivalidades. 7 Comportamento social é uma troca de bens, bens materiais mas também bens não-materiais, tais como símbolos de aprovação ou de prestígio. 8 Commented [.1]: Já que uso uma tradução para o inglês do original francês, talvez seria melhor colocar o português no texto notando a trajetoria dele numa nota. a reciprocidade possibilita o altruísmo por meio do egoísmo (Cf. Schumaker: 1992, p.31). A contribuição de Gouldner nisso é a de ter ligado a motivação individual ao papel que a doação cumpre em constituir as relações sociais. Marshall Sahlins introduz duas distinções importantes na discussão das trocas. Primeiro, ele distingue a “reciprocidade” propriamente dita da “pooling” (prática de juntar capitais) ou “redistribuição”. A primeira item envolve relações entre duas partes. A última consiste de um “sistema de reciprocidades” em que agentes individuais doam a um agente central que em seguida redistribui os bens entre eles (1972, p.188). Estas duas formas de relações de troca cumprem diferentes papéis sociais: Pooling stipulates a social center where goods meet and thence flow outwards, and a social boundary too, within which persons (or subgroups) are cooperatively related. But reciprocity stipulates two sides, two distinct social-economic interests. Reciprocity can establish solidary relations, insofar as the material flow suggests assistance or mutual benefit, yet the social fact of sides is inescapable. (1972, p.188-189)8 Seguindo Gouldner, passa a distinguir entre reciprocidades “generalizadas”, “equilibradas”, e “negativas”. Considerando a importância do conceito de “trocas generalizadas” de Lévy-Strauss, que 8 O pooling estipula um centro social onde os bens se encontram e dali fluem para fora, e [estipula] também um limite social em que as pessoas (ou sub-grupos) se relacionam cooperativamente. Porém a reciprocidade estipula dois lados, dois interesses socio-econômicos 9 é bem diferente, é provavelmente melhor referir-se ao conceito de “reciprocidade generalizada” de Sahlins com o termo alternativo que ele mesmo sugeriu: “reciprocidade indefinida”. Na reciprocidade indefinida bens e assistência são dados livremente sem preocupação com um retorno. A reciprocação geralmente acontece, sim, mas freqüentemente ao longo de um bom tempo e numa maneira que não se mede facilmente em relação ao ato original de doação. Na reciprocidade equilibrada o valor dos bens trocados é calculado e bens equivalentes trocados com pouca demora ou com nenhuma; esta reciprocidade é menos pessoal e mais “econômica” que a reciprocidade indefinida. Na reciprocidade negativa, cada parte tenta conseguir alguma coisa sem dar nada. Exemplos da reciprocidade negativa vão desde a pechincha até o roubo. Estas três categorias estabelecem um contínuo entre a solidariedade e os extremos anti-sociais, entre o altruísmo e o egoísmo. Considerando as reservas de Gouldner acerca da motivação, esta tipologia de reciprocidades é útil para a examinação da maneira como a reciprocidade contribui à solidariedade social. O contraste entre as reciprocidades indefinidas é freqüentemente equacionado com o contraste entre troca de presentes e troca mercantil, mas isto pode enganar. Como sugeriram Jonathan Parry e Maurice Bloch, perspectivas ocidentais de dinheiro e de mercados tendem a introduzir uma distorção em nossas idéias de câmbio em culturas alheias em três maneiras importantes: economias não-monetárias freqüentemente são equacionadas com culturas tradicionais, e economias monetárias, com culturas modernas; pensa-se que o surgimento de uma economia distintos. A reciprocidade pode estebelecer relações solidárias na medida em que o fluxo material sugere a assistência ou benefício mútuos, mas do fato social dos “lados”, não se pode fugir. 10 monetária causa uma erosão nas distinções e valores morais; e, o que mais importa para este paper, transações monetárias que são impessoais são contrastadas com trocas de presentes que são personalizadas e moralmente fecundas (1989). Contudo, contra-exemplos bem claros que desmentem cada uma destas constatações são encontradas em culturas alheias. A respeito da alegada tensão entre dinheiro e presentes, Parry e Bloch consideram que “the radical opposition which so many anthropologists have discovered between the principles on which gift and commodity exchange are founded derives in part, we believe, from the fact that our ideology of the gift has been constructed in antithesis to market exchange” (1989, p.9).9 A distinção que Sahlin faz entre trocas em que o retorno é calculado e as em que não é uma distinção importante. Importa, contudo, evitar equacionar esta distinção com a que existe entre trocas de mercado e de presentes. Claude Lévi-Strauss faz um contraste entre “troca generalizada” e “troca restrita” (1969, p.178). Para Lévi-Strauss, a troca restrita é uma relação entre duas partes, uma que doa e outra que recíproca. A troca generalizada é uma relação mais aberta em que o doador de origem inicia um ciclo de trocas em que cada um que recebe também doa mais um presente a um outro, distinto da pessoa de quem ele recebeu o presente. O ciclo termina quando o doador de origem recebe a última dádiva no ciclo por ele iniciado. A troca restrita é da forma A:B:A; a troca generalizada é da forma A:B:C:D:A, e a duração do ciclo é indeterminada. Importa notar que a discussão de Lévi-Strauss sobre a troca generalizada está no contexto de trocas matrimoniais. Em conseqüência disto ele considera que “generalized exchange presupposes equality, and is a source of inequality” (1969, 9 A oposição radical que tantos antropólogos descobriram entre os princípios em que são baseadas as trocas de presentes o comodidades tem sido construido em antítese às trocas de mercado. 11 p.266)10. Pressupõe-se a igualdade porque todas as trocas são, no ideal, trocas de mulheres de linhagens iguais de status e prestígio. Surge a desigualdade da intrusão de interesses no ciclo de trocas, que pode ser longa, entre a doação original e o retorno final ao doador. O conceito de troca generalizada pode ser usado para levar em consideração uma classe abrangente das relações sociais sob o cabeçalho da dádiva. Levando em consideração estes conceitos e estas distinções provindos das teorias ocidentais, antropológicas e sociológicas, da dádiva, voltamos para três estudos influentes das religiões do sul da Ásia. Cada um analisa a doação religiosa, ou seja, dāna. Cada um defende a tese que mudanças sociais importantes na sociedade do sul da Ásia eram devidas ao impacto de formas específicas de relações de dádiva. E cada um destes argumentos fracassa por causa do uso inadequado destas idéias ocidentais. Ao longo do caminho, vou ressaltar algumas das lições que estudiosos da religião podem aprender a partir dos erros que estes autores fizeram. Problema 1: Postular uma idade de ouro da reciprocidade J.C. Heesterman discute dāna a fim de explicar a origem e a função social do ascético ou renunciante hindu. Na visão dele, os ascéticos deixaram a sociedade primeiro porque a sociedade era excessivamente limitadora, e isso era devido à força dos vínculos sociais forjados por relações de dádiva. Para Heesterman, “the preclassical [Vedic] system of ritual was characterized by what Mauss called ‘prestations totales de type agonistique’, involving an ever repeated cycle of exchanges” 10 A troca generalizada pressupõe a igualdade, e ela é uma fonte de desigualdade. 12 (1985, p.31)11. Da mesma maneira de Mauss, Heesterman considera que as primeiras trocas recíprocas forjaram um vínculo de dependência entre doadores e receptores que era forte demais: a reciprocidade impunha obrigações excessivas (1985, p.33; cf. Mauss: 1990, p.59). Em outras palavras, ele assume uma visão idealizada de relações recíprocas de troca e de seu efeito dominante nas relações sociais, como o ponto “antes” de sua análise “antes-e-depois”. Heesterman em seguida argumenta que especialistas antigos em rituais internalizaram esta troca recíproca. O sacerdote usou o ritual como um instrumental para conseguir um dar-e-receber de equivalência funcional, libertando-o da necessidade de trocas reais com outras pessoas. Este lance individualizante (que elimina o outro) colocou os pólos simbólicos de vida e de morte (as duas dimensões do sacrifício) sob o controle ritual de uma pessoa. Isto “was a breakthrough in that it set the individual free from the oppressive bonds of reciprocity which tied him to the others, his rivals” (1985, p.33)12. Na visão de Heesterman, eis a origem do renunciante nas tradições do sul da Ásia. Heesterman, como Mauss, depende somente em provas textuais e ele é rápido em propor interpretações abrangentes. Mais importante ainda, ele depende muito em Mauss pare formar as suas opiniões sobre relações de troca. Esta dependência enfraquece o seu argumento. A visão que Heesterman tem de relações de troca está limitada em três maneiras. Primeiro, seguindo Mauss, ele limita a sua discussão ao caso paradigmático do sacrifício védico, que oferece somente uma visão limitada dos tipos de relações de dádiva que existiam em sociedades do sul da 11 O sistema pré-classico (védico) de ritual estava caracterizado pelo que Mauss chamou de “prestações totais de tipo agonístico”, envolvendo um ciclo de trocas que sempre se repete. 12 Foi uma novidade crucial que liberou o indivíduo dos vínculos opressores de reciprocidade que o vinculou a outros, que eram seus rivais. 13 Ásia. Ele sugere que o papel do renunciante na sociedade hindu foi simplesmente uma reação a uma suposta reciprocidade pré-clássica, mas isso é negligenciar um espectro inteiro de relações sociais e de sua evolução dentro do qual qualquer discussão dos renunciantes deve ser colocado. Segundo, mesmo neste contexto limitado, o argumento de Heesterman sobre a origem do renunciante enfoca a dádiva material do sacrifício com uma exclusividade excessiva, negligenciando a importância de conceitos tais como mérito e prestígio na discussão sobre relações de dádiva. Mesmo assim, tendo baseado seu argumento numa visão materialista da troca, ele passa a incluir a troca não-material em discutir a nova relação à sociedade do brahmin-como-renunciante: being self-contained and independent, the true Brahmin does not take part in the pure-impure complementarity and exchange. His purity is not dependent on his partners, it is absolute. On this basis he can dispense religious merit by accepting food and presents without staking his purity. (1985, p.44)13 Esta inconsistência no padrão de purezas está relacionada com a terceira limitação no argumento de Heesterman: ele tem uma visão limitada da natureza da reciprocidade. A opinião dele que o sacrifício pré-clássico envolvia uma troca recíproca e a presupposição dele que relações recíprocas implicam na igualdade dos participantes, o permitem a estabelecer uma dicotomia falsa entre e sociedade hindu antes e depois da mudança cuja existência ele defende: 13 Sendo auto-contido e independente, o verdadeiro brahmin não participa da complementaridade e troca do puro e do impuro. A pureza dele independe do seu parceiro, não é absoluto. Nesta base ele pode dispensar mérito religioso aceitando comida e presentes sem ariscar a sua pureza. 14 The individualization which transformed the ritual must also have meant a transformation in the field of social relations--or at least in the ideas governing their representation. In principle, the reciprocal relations between equal parties have been cut; there can be no more exchange and reversal of roles. Consequently the groups stay fixed in their roles. (1985, p.35)14 Heesterman percebe uma mudança de “prestações homogêneos” para “especialização funcional”, de reciprocidade para hierarquia (1985, p.35). Na violação do ciclo das relações de troca – em retirar-se da sociedade – o renunciante congelou a estrutura da sociedade. Em levar consigo o mecanismo, agora internalizado, que lida com a morte e com a impureza, ele fixou aquela estrutura como hierárquica, classificada pela impureza que não pode mais fluir pelo ciclo de trocas de outrora. O renunciante é como uma criança que deixa uma partida de futebol levando a bola consigo. O jogo, o dar-e-receber, não pode continuar sem ele. A pureza torna-se a marca da hierarquia, porque uma ruptura nas relações sociais não a deixa circular numa maneira que preservaria a reciprocidade. Heesterman diz explicar muito na base de uma distinção entre a reciprocidade pré-clássica e a estrutura hierárquica da sociedade hindu. Contudo, as suas evidências do sacrifício pré-clássico como consistindo de trocas recíprocas são fracas. Sua dependência de evidências textuais deixam questionáveis as suas conclusões a respeita da prática (O que se faz na prática não corresponde 14 A individualização que transformou o ritual deve também ter implicado uma transformação no campo das relações sociais – ou pelo menos nas idéias que governam a sua representação. Em princípio, as relações recíprocas entre partes iguais já foram cortadas; não se pode haver mais trocas e inversão de papéis. Consequentemente os grupos permanecem fixados nos seus papéis. 15 necessariamente ao que dizem os textos normativos). Seguindo Mauss, Heesterman impõe uma visão indevidamente limitada sobre no que consistem as relações de troca “primitivas”: materiais, recíprocas, e entre iguais. Ele pressupõe um ponto de partida histórico idealizado. Isto o permite de estabelecer uma dicotomia brusca entre os dois períodos, entre a reciprocidade e a hierarquia. De uma maneira ainda mais fundamental, ele impõe uma dicotomia brusca na sua visão sobre o ponto final desta mudança histórica, que é a sociedade hindu: “In the course of development, the two poles of life in the world and life in the forest have been dissociated…. [The renouncer] is no longer a party to the world because he is independent from it…. [He is] in the world but not of it…” (1985, p.41,43)15. Heesterman propõe esta brusca dicotomia na sociedade hindu entre o mundano e o religioso, entre o impuro e o puro. Ele também pressupõe uma visão restrita da reciprocidade que o permite a sugerir um estado da reciprocidade primordial que está em contraste brusca. Esta imposição de dicotomias polarizadas é facilitada pela sua dependência num tipo único de doação religiosa. Uma consideração de práticas levaria a uma visão mais matizada. O fato principal nisso é que Heesterman tentou explicar traços fundamentais da religião e da sociedade hindus baseando-se em trabalhos conceituais enganosos e inadequados. O argumento está em círculo, ele projeta o “outro” do que ele vê como determinado no hinduismo para o passado, e ele emprega dicotomias tiradas da teoria antropológica da dádiva para explicar a mudança de outrora para agora. Há mais quatro lições nisso para o estudo da religião. (Todos são, é claro, diretrizes suscetíveis a exceções e qualificações). Primeiro, evita equacionar superficialmente conceitos 15 Ao longo da evolução, os dois polos da vida no mundo e vida na floresta têm ficado dissociados... [O renunciante] não faz mais parte do mundo porque independe do mundo... [Ele 16 internos de uma sociedade (como o dāna) com termos técnicos (como dádiva). Segundo, evita a tentação de equacionar as dicotomias históricas que aparecem de um ponto de visto específico (como relações de troca e estruturas sociais) e dicotomias conceituais (como reciprocidade versus hierarquia). Podem ser relacionadas, mas isso deve ser provado não presuposto. Terceiro, presta atenção ao leque mais abrangente possível de fenômenos relevantes (neste caso o leque abrangente de idéias e práticas que correspondem ao cabeçalho de dāna). Quarto, fique consciente que crenças normativas e relatos textuais nem necessariamente refletem as práticas reais. Problema 2: Contrastar a idade das relações de dádiva com a idade das relações de mercado O breve estudo histórico de Romila Thapar sobre formas hindu de doação começa com um resumo do Essai sur le don de Mauss (Thapar: 1976, p.38). De acordo com estudos mais recentes, ela vai além de Mauss em considerar o quanto a troca de presentes “kept goods and people in circulation in a particular pattern and also acted as a means of maintaining political relationships and ranking” (1976: 39)16. Ela também vai além de Heesterman em fornecer uma visão bem mais detalhada da evolução histórica de dāna. Thapar percebe três mudanças históricas principais em concepções de dāna. Primeiro, no período védico tardio, dāna evoluiu de uma “channel of redistribution of wealth” a uma “channel of deliberate exchange” (1976, p.42)17. O caso paradigmático de dāna era primeiro a redistribuição de bens por um rei ou cacique tribal, depois presentes de um patrão generoso aos está] no mundo mas não do mundo...” 16 mantinha bens e possoas em circulação numa determinada configuração e também agia como uma maneira de manter as relações políticas e a hierarquia. 17 sacerdotes que oficiaram um sacrifício. Enquanto isto evoluiu, dāna tornou-se um caso mais claro da troca de dádivas. Segundo, uma reciprocidade entre dāna e mérito surgiu no período clássico, provavelmente influenciada pelo alastramento do budismo: doar a receptores apropriados chegou a ser visto como rendendo méritos para o doador. Terceiro, Thapar pensa que outorgar terras e aldeias aos brahmins tornou-se a forma central do dāna no período medieval. A institucionalização da prática frente a uma economia emergente de mercado “changed the comprehension of dāna as part of gift-exchange” (Thapar: 1976, p.48)18. A história que ela conta, então, é uma em que dāna começa como a redistribuição de bens por um cacique tribal vitorioso, torna-se um processo de troca de presentes e acaba como um elemento institucionalizado de uma economia mais evoluída. Thapar suplementa Mauss em abordar tanto trocas não-materiais e o papel constitutivo que o dāna cumpre na sociedade hindu. Contudo, certas pressuposições acerca da natureza da troca inibem a sua apresentação destas mudanças históricas na concepção do dāna. O interesse que Thapar tem em “the degree to which the nature of gift-giving reflects the socio-economic structure of the society”19 a conduz a negligenciar uma dimensão importante do dāna: “Needless to say, gift-giving in this connection refers to major gifts given on particular and special occasions and not to the daily or routine ritual of small-scale dāna” (1976, p.37)20 Isto entorta a sua apresentação em duas maneiras. Primeiro, ao nível metodológico, esta abordagem combina com o preconceito dos estudiosos em favor da dependência exclusiva em evidências textuais, que nos informam sobre as visões normativas do dāna mais que sobre as práticas reais. É 17 canal de redistribuição de riqueza... canal de trocas voluntariosas 18 mudou a compreensão do dāna como sendo parte da troca de presentes 19 o quanto a natueza da doação de presentes reflete a estrutura socio-econômica da sociedade 18 provável que muitos aspectos do dāna não são suficientemente relatados por que uma grande parte das evidências textuais, por exemplo os dāna-stutis, são relatos dos beneficiados de grandes doações que foram feitos para eles, e também podem ser vistos como tentativas de gerar futuras doações aos seus autores (Cf. Gonda: 1965, p.216).21 Segundo, e mais fundamental, tal enfoque passa por cima da questão do papel do dāna em constituir práticas socioeconômicas. Supondo que somente as transações de grande escala são dignos de consideração, Thapar pressupõe uma visão restrita de relações econômicas. Ela descarta evidências de potencial importância antes mesmo de considerar a sua relevância. Chegando ao saldo da discussão, depois de ter a discussão limitada a certas formas do dāna e a uma certa concepção sobre como era a economia, não é surpreendente que ela descobre que as duas coisas são congruentes. As pressuposições de Thapar sobre o papel socioeconômico do dāna são mais claras na sua discussão das tensões entre a troca de presentes e o economia de mercado que surge. Na discussão do contexto budista em que ele considera ter surgido a troca de dāna por mérito, ela diz: All that the bhiksu or the sangha could provide to the donor in exchange for dāna was punya or merit, since the exchange was between economically unequal sections of society…. The reciprocity of dāna with punya may also have been conditioned by the fact that in the larger towns ... the gift-exchange economy was on the decline and was being gradually replaced by 20 É desnecessário dizer que a doação de presentes nesta conexão se refere a presentes maiores doados em ocasiões específicas e especiais e não ao ritual do dāna ritual ou de menor escala. 19 an approximation to the impersonal market economy of commerce and where the unit of money was the currency of exchange. In such an ethos gift-exchange made little sense and the dāna-punya reciprocity held out some compensation for the donor…. In contrast to the market system, dāna is not an impersonal exchange. It involves two parties in a clearly defined relationship, which relationship is affected by the giving of dāna…. It would almost appear that by insisting on the institution of dāna and the ensuing nexus there was an attempt to invert the values of the market system and to reincarnate those of the gift-exchange. (1976, p.46-47)22 Nisso ele considera que os valores que são implícitos no dāna podem ser contrastados nitidamente com os de uma economia monetária ou de mercado. Contudo, este contraste nítido entre as antigas relações de troca de presentes e as novas relações de mercado é insustentável. Em contraste nítido a Thapar, Jonathan Parry e Maurice Bloch sugerem que a Índia é um exemplo claro de uma cultura em que os mercados e a economia monetária 21 Para um estudo que abrange fontes além dos textos normativos veja Orr (2000). Ela usa as inscrições nas pedras dos templos hindus e jains do sul da Índia para explorar várias dimensões não canônicas do dāna. 22 A única coisa que o bhiksu ou o sangha podia fornecer ao doador em troca do dāna era punya ou mérito, pois a troca era entre setores da sociedade que eram desiguais... A reciprocidade do dāna com punya pode ter sido também condicionado pelo fato que nos povoados maiores... a economia de troca de presentes estava em declínio e estava sendo substituído paulatinamente pela aproximação à economia de mercado impessoal de comércio e onde a unidade monetária era o meio de troca. Num tal etos, a troca de presentes não faz muito sentido e a reciprocidade de dāna e punya oferecia alguma compensação para o doador... Em contraste ao sistema de mercado, dāna não é uma troca impessoal. Ele envolve duas partes num relacionamento bem definida, relacionamento este, que é afetada pela doação de dāna…Quase aparece que, na insistência na instituição do dāna e no decorrente nexo, houve uma tentativa de inverter os valores do sistema de mercado e reencarnar os da troca de presentes. 20 se adequaram aos valores religiosos e morais que já estavam presentes (1989, p.17-18). O recurso de Thapar para uma tentativa de “inverter os valores do sistema de mercado” faz pouco sentido se os valores de mercado nunca estavam presentes como um sistema separado e em competição, como argumentam Parry e Bloch. Uma distinção teórica entre relações de dádiva e as de comércio (trade relations) é feita frequentemente, mas as qualidades dos dois tipos e a forma de mistura entre eles são sujeitas a variações históricas e culturais (Parry e Bloch: 1989). Este contraste é freqüentemente ligado ao que existe entre a tradição e a modernidade, e é igualmente enganoso (Engler: 2005, p.366-374). Como Malinowski reconheceu em 1922: “it is impossible to draw any fixed line between trade on the one hand, and exchange of gifts on the other. Indeed, the drawing of any lines to suit our own terminology and our own distinctions is contrary to sound method” (1961, p.176)23. O continuum de reciprocidade que Sahlins faz, desde a indefinida até a negativa, ressalta uma dimensão importante onde o comportamento de troca varia, sim, mas a presença de dinheiro e mercados não se correlaciona com ele. Além disso, a constatação de Thapar que monges budistas, freiras e a sangha tinha pouco poder econômico também precisa ser qualificada. É verdade que a maioria de monges e freiras possuíam pouco ou nada e que os textos canônicos diziam que não deveriam ter possessões. Contudo, há evidências de todos os períodos que monges e freiras possuíam, sim, possessões particulares. (Sabe-se que pelo menos um mosteiro cunhava sua próprias moedas [Schopen: 1991p.79]). Stephen Kemper defende que a tradição budista sinalesa desaconselhava não a possessão de 21 riqueza pelos monges mas somente seu abuso (Kemper: 1990). O valor da sangha não é uma função de sua pobreza. Thapar, então, impõe uma distinção excessivamente nítida entre a troca de presentes e uma economia de mercado, e isto se reflete não somente na sua decisão de considerar somente o dāna de grande escala e na sua visão da relação entre a riqueza e o valor da sangha. Estas considerações frisam a necessidade de ir além de uma proposta distinção entre trocas de presentes e de mercado para olhar o sistema de práticas e valores em que ambos estão inseridos (imbedded). Mais uma dimensão que falta ao estudo de Thapar está implícito numa outra pressuposição dela. No longo trecho que é citado acima, Thapar diz que a reciprocidade envolve “two parties in a clearly defined relationship”24, e ao longe de seu texto ela se limita a considerar relações a dois (one-to-one relationships) entre doador e recipiente. Algumas das distinções que saõ consideradas na primeira parte deste paper sugerem maneiras mais compreensivas de considerar o dāna. Por exemplo, o conceito que Sahlins tem de pooling ou redistribuição parece relevante ao estudo da história de dāna. Thapar começa o seu texto considerado a redistribuição por um rei ou cacique tribal como um paradigma do dāna e ela defende que isto evoluiu para uma troca de presentes centrada em rituais de sacrifício. Tal redistribuição não desapareceu para ser substituída pela troca de presentes como sugere Thapar, porém. Templos hindu no sul da Índia medieval cumpriram um papel social e econômica de importância em redistribuir doações que lhes foram feitos por leigos e em distribuir honras aos que mostraram valor por meio de dāna e outras ações 23 É impossível traçar qualquer linha fixa entre comércio de um lado e a troca de presentes no outro. De verdade, traçar linhas para combinar com a nossa própria terminologia e as nossa distinções é contrário ao método confiável. 24 duas partes num relacionamento bem definido 22 beneméritas (Appadurai e Appadurai Breckenridge: 1976; Orr: 2000). Ainda mais, num paralelo estreito ao caso védico primitivo que Thapar cita, os templos também serviam para redistribuir os botins militares que eram doados por reis e guerreiros (Talbot: 1988, p.87). A redistribuição de doações e prestígio pelos grandes templos e o poder implícito de conferir status nos reis que assumiram o papel de protetor do templo eram fatores importantes na expansão do novo sistema estatal do sul da Índia: poder cultural e político estava implícito no estabelecimento de novos templos (Talbot: 1988, p.3ss; Stein: 1977). Mais ainda, doações feitas aos templos, no passado ou no presente, eram um indicador importante de status social e forneceram acesso a afiliações sociais, econômicas e políticas que eram de prestígio e de utilidade (Ramaswamy: 1985, p.433,437; Koppedrayer: 1991; Appadurai e Appadurai Breckenridge: 1976). Isto sugere a relevância do conceito que Sahlins tem de reciprocidade indefinida, que se refere a instâncias em que uma doação de bens ou de assistência é dada sem expectativa de reciprocação, embora uma reciprocação normalmente seja dada num momento não especificado e numa maneira não especificada. Isto parece captar algo essencial em muitas instâncias importantes do dāna. Por exemplo, os status moral, social e econômica da negociantes jain e hindu são interconnectados intimamente. Douglas Haynes defende que dāna que é dada por comerciantes hindu ganhava-lhes reputações de ricos e confiáveis que eram vantajosos para seus interesses comerciais. Mais, este processo era um fator vital na estabilidade de uma “vast commercial economy that functioned without legally enforceable contracts or modern financial institutions” (Haynes: 1987, p.342)25 . A despeito desta preocupação com a reputação, contudo, 25 uma vasta economia comercial que funcionava sem contratos com respaldo legal ou instituições financeiras modernas. 23 estes comerciantes consideravam que era impróprio dar dāna por motivos egoistas. Dar dāna na maneira certa é dar sem expectativa de retorno, mas um retorno geralmente acontece n’algum momento e n’alguma maneira. John Cort observou este mesmo processo entre leigos jain contemporâneos, cujos ganho ou perda de reputação é especialmente dependente da quantia de dāna que eles dão (1991; cf. Reynell: 1987, p.1991). Os comerciantes parecem dar dāna para avançar as suas reputações, mas, ao mesmo tempo, eles defendem que não se deve dar dāna por motivos egoístas. Esta visão, aparentemente paradoxal, não resulta de um choque entre dois sistemas incompatíveis de valores, um mundano e outro religioso, mas da inseparabilidade destes dois domínios de valores na sociedade do sul da Ásia. Os comerciantes acreditam que o sucesso que resulta em parte de suas reputações de doadores de dāna os permitem, por sua vez, a dar dāna ainda maior. Um dos leigos que Cort entrevistou disse, “How can you get anything if you don’t prime the pump?” (Cort 1991: 410)26. Esta confluência de valores religiosos e mundanos é central na prática de dāna. O estudo de Thapar, por negligenciar uma grande parte da esfera em que o dāna participa da economia de trocas e de mercado, omite de deixar isto claro. Há mais duas lições nisto para o estudioso da religião (além das lembranças das primeiro quatro lições já dadas). Quinta lição: começa assumindo que os contrastes entre relações de dádiva e de mercado existem numa forma mista nas sociedades que se está estudando (num espectro que vai desde uma ênfase maior numa até uma ênfase maior noutra), não como formas puras que determinam tipos distintos de sociedades. Sexto, presta atenção à abrangência toda de tipos de relações de câmbio 26 Como você consegue alguma coisa se não colocar água na bomba para fazê-la funcionar? 24 que foram identificados pelos teoristas da dádiva e não a dicotomias simples que oferecem interpretações prontas ou simples dos dados. Problema 3:Sobrepor distinções distintas Ivan Strenski usa a distinção de Lévi-Strauss entre trocas restritas e generalizadas para considerar a domesticação da sangha budista, a transição de um grupo de mendicantes vagantes para uma comunidade com residência fixa. Ele defende que as relações sociais que são nutridas pela prática de dar presentes (um elemento-chave nas relações entre leigos e monges) levam os monges para relações mais estreitas com a sociedade leiga no dia-a-dia. Ele chama isto de “domesticação da sangha”. Michael Ames, num estudo anterior do budismo sinalês, chamou a atençaõ à “network of prestations that serves to bind all together in the same ‘Buddhist moral community’“ (1966, p.32)27. Strenski joga mais luz nas funções sociais da dádiva em ir além da distinção de Ames entre as transações recíprocas e as não recíprocas. Defende que a “domestication of the sangha occurs whenever certain relations are established between the sangha and laity, whenever the sangha participates with the laity in institutions” (1983, p.465)28. Ele enfoca principalmente relações econômicas e defende que relações de troca entre a sangha e os leigos, especialmente os de troca generalizada, eram um fator crucial na domesticação da sangha. 27 rede de prestações que serve para interligar todos na mesma ‘comunidade moral budista’ 28 Domesticação da sangha acontece quando se estabelecem certas relações entre a sangha e os leigos, quando a sangha participa junto com os leigos em instituições. 25 Exemplos relevantes de troca generalizada são: o gerenciamento de terras pela sangha, da qual os benefícios infiltram29 e enriquecem a sociedade em geral; a conversão de bens duráveis em bens culturais; e, o que mais importa, a relação entre os presentes dados e o mérito alcançado desde o “campo de mérito” da sangha. Strenski diz que dāna é uma “espécie” de câmbio generalizado e que o câmbio generalizado links its members in a theoretically open system of indebtedness the momentum of which tends to build up systems of social solidarity.... Thus, if gift-giving to the sangha in the spirit of GX30 is normal and natural to Buddhism, then so also is its consequent domestication. (1983, p.471)31. A explicação que Strenski fornece da domesticação da sangha em termos de trocas generalizadas tem importância e valor. Contudo, um outro aspecto do texto dele é menos persuasivo: ele diz que trocas generalizadas determinam a trajetória moral da sociedade budista. A independência destes dois argumentos e as pressuposições que limitem o segundo são mais claros no seu tratamento da troca de dāna por mérito. Strenski argumenta que a sangha se engajou por necessidade numa troca qualificada com a comunidade leiga: “If exchange relations are left unqualified, the sangha tends toward laicisation; if 29 Em inglês: trickle down. 30 Strenski escreve ‘RX’ para a troca restita e ‘GX’ para a troca generalizada. 31 liga seus membros num sistema, que é teoricamente aberto, de endividamento, do qual o momento tende a construir sistemas de solidariedade social. . . . Desta forma, se a doação de presentes à sangha no espírito de trocas generalizadas é normal e natural no budismo, a sua subseqüente domesticação também o é. 26 exchange relations are qualified, the sangha become laicised by another route [through becoming self-sufficient] or ceases to exist” (1983, p.472)32. O argumento dele se reduz a uma opinião, que a domesticação da sangha já estava implícita nestas relações de troca. As duas dimensões primárias desta qualificação pareciam derivadas do pouco interesse que a sangha tem por bens mundanos e seu acesso privilegiado a valores religiosos e éticos. Strenski elabora o segundo. Ele faz isto procurando mérito na troca de dāna. Strenski defende com dois argumentos aparentados que ele está considerando um processo de trocas generalizadas mas não restritas. Primeiro, a doutrina ortodoxa ensina que mérito não é dado pela sangha em troca por dāna. Mérito é trabalhado pelo doador e tem sua origem no “campo de méritos” que foi constituído pela retidão e ação ritual do Buda e da sangha (Ames: 1966, p.31; Strenski: 1983, p.473). Segundo, a sangha não pode dar mérito em troca por dāna por que “merit is not, strictly speaking, a thing at all. Merit is a relationship of being in a higher karmic state...” (Strenski: 1983, p.476n4)33. Strenski pode fazer estas duas constatações somente desconsiderando a relevância de uma esfera importante de práticas. Como ele admite, leigos calculam retornos de mérito pelo dāna que eles dão para a sangha. A crença que se pode transferir mérito ganho por dāna a outra pessoa, normalmente um falecido parente, tem feito parte tanto do budismo como do hinduismo desde a 32 Se relações de troca são deixadas não qualificadas, a sangha tende para a laicisação; se relações de troca são qualificadas, a sangha se laicisa por um outro caminho [tornando-se autosuficiente] o deixa de existir 33 Mérito, a rigor, não é mesmo uma coisa. Mérito é um relacionamento de ser num estado cármico mais elevado... 27 idade média (Schopen: 1991, p.10ss; Talbot: 1988, p.87). 34 Passando por cima disto, Strenski dribla evidências que parecem contrárias ao argumento dele. Se os doadores dão dāna para transferir mérito a falecidos parentes, então o mérito parece ser mais “coisa” do que Strenski sugere, e a troca é, como ele próprio admite, mais parecida com uma troca restrita que uma troca generalizada. O motivo que Strenski fornece para enfocar somente as teorias ortodoxas é que os que ficam excessivamente metidos num “crass calculus of spiritual merits and demerits.... will have missed understanding what morally makes a Buddhist civilization” (1983, p.474)35. A teoria folk ou popular percebe mérito como uma troca simples e restrita entre leigos e a sangha. A teoria ortodoxa “sees the meritorious giving of dāna to the sangha as a normal part of pious Buddhist life which, it may or may not be understood, circulates wealth through the sangha for the benefit of all” (1983, p.474)36. O dāna, portanto, é na verdade uma troca generalizada, embora o povo que o praticam não entendam isto necessariamente, e a troca generalizada é o caminho para “entender o que, moralmente, faz uma civilização budista”. As opiniões de Strenski sobre trocas generalizadas e restritas são, na última instância, incompatíveis com as de Lévi-Strauss, de quem ele emprestou os conceitos. Ele monta um contraste 34 Gregory Schopen defende que este fato, entre outros, é freqüentemente escurecido pela dependência dos estudiosos de textos em oposição a inscrições e outras evidências mais reveladoras das práticas (1991). Ele sugere que isto pode ser enraizado numa ênfase dos ocidentais sobre textos que remonta à reforma protestante. A renegação de tais opiniões por Strenski tem outra fonte, que é discutido mais adiante neste paper. 35 cálculo calculista de méritos e deméritos... terá deixado de entender o que faz, moralmente, uma civilização budista. 36 percebe a doação benemérita de dāna à sangha como uma parte normal da vida piedosa dos budistas que, entendido ou não, circula a riqueza por meio da sangha para o benefício de todos. 28 (no caso mais simples) entre um ciclo completado de doação e contra-doação e a ampla circulação de bens numa sociedade: In a scheme of restricted exchange … a transaction can be complete (this is what we often call reciprocity). It operates between two parties, and essentially aims to achieve an equilibrium…. GX seeks an unbalanced condition between exchange partners, which requires repayment at some unspecified time, typically by another group or person than the original receiver of the first gift…. Such a system circulates gifts in a scheme theoretically open to an indefinite number of members. Pushed to its limit, GX approaches sacrifice, which I take to be outright giving in which no return is expected…. (1983, p.471)37. Em outras palavras, a troca generalizada tende a resultar em presentes que não são vistos como retorno ao doador, onde uma troca restrita é isto mesmo, ítem por ítem. Em dizer que uma troca restrita permite que as transações se completam, Strenski implica que o oposto se aplica a trocas generalizadas. Sua proposta que a troca generalizada aproxima-se a sacrifício vai mais além ainda. Diz Strenski, “Buddhist dāna has the spirit of sacrifice rather than 37 Num esquema de trocas restritas... uma transação pode ser completa (É isto que nós frequentemente chamamos de reciprocidade). Ela opera entre duas partes e essencialmente visa alcançar um equilíbrio... Trocas generalizadas procuram uma condição desequilibrada entre parceiros de troca, que necessita de recompensa num momento não especificado, tipicamente por um outro grupo ou pessoa que não o recipiente da primeira doação... Um tal sistema circula presentes num esquema que é teoricamente aberto a um número indefinido de membros. No seu limite, a troca generalizada aproxima-se ao sacrifício, que eu entendo como uma doação em que não se espera nenhum retorno... 29 RX. But then that spirit is just what Lévi-Strauss claims GX uniquely possesses” (1983, p.475)38. Isto entorta Lévy-Strauss, que enfatiza que a troca generalizada estabelece uma série de operações que operam na base de crédito e confiança, mas ele considera que a expectativa de retorno é fundamental: “There must be the confidence that the cycle will close again.... In the final analysis, the whole system exists only because the group adopting it is prepared ... to speculate” (1969, p.265, grifo no original)39. Trocas generalizadas têm como premissa a expectativa de ser premiado, por mais especulativo que seja. Assumindo um risco de ficar sem retorno não é a mesma coisa de não esperar nenhum retorno. Longos ciclos de trocas geralmente conduzem a discrepâncias entre os valores de presentes dados e os recebidos pelas diversas partes no ciclo, mas o sistema é baseado numa igualdade teórica em que todas as partes recebem retornos equivalentes por presentes equivalentes (Lévi-Strauss: 1969, p.266). A expectativa por cada parte de receber um retorno é fundamental tanto a trocas restritas como de trocas generalizadas; é central nas intenções de engajarse em trocas. A troca generalizada, então, é fundamentalmetne diferente de sacrifício; não é “doação direta em que não se espera por retorno” 40. A idea de que trocas generalizadas se assemelhado a sacrifício é central no texto de Strenski. Deixando a parte as dificuldades de aplciar a visão de Lévy-Strauss sobre trocas generalizadas neste contexto, resta ver como é que Strenski utiliza o conceito. 38 O dāna dos budistas tem o espírito de sacrifício mais que o tem a troca restrita. Mas aquele espírito é justamente o que Lévy-Strauss diz que a troca generalizada tenha, numa maneira única. 39 Precisa haver confiança que o ciclo se fechará de novo... Na análise final, o sistema inteiro existe somente porque o grupo que o adota está prepárado a especular. 40 Um outro retrato de sacrifício, obviamente, poderia deixar claro o quanto se espera um retorno quando se fazem as oferendas sacrificiais. Isto tendaria a trazer o sacrifício para dentro do campo de trocas. O efeito seria mais isto doe que o oposto (Cf. Parry: 1986, p.459, 469n5). 30 Uma troca generalizada coloca entre o ato original de doação e qualquer retorno um número indefinido de partes e um prazo de tempo indeterminado. Diz Strenski: “the sangha does not necessarily reciprocate to the [layperson] for gifts given (least of all merit!) but instead acts to benefit a third party, which in turn eventually brings benefit back to the original donor” (1983, p.473)41. Ele sustenta que a expectativa de retorno por parte de um doador é tão baixa que a troca parece ser sacrifício. Por isso, no centro das relações de troca generalizada que levaram a sangha em contacto permanente com a comunidade leiga, Strenski encontra um éco de sacrifício. Tal doação sacrificial, ele sugere, providencia “a vector directing the desired trajectory of any given Buddhist society ... along the route to Nibbana” (1983: 476)42. Em trocas generalizadas, então, Strenski acha uma chave tanto às estruturas como aos valores de uma sociedade budista. Uma situação de trocas generalizadas determina a natureza de relações entre as sangha e a comunidade leiga e permite os valores nibânicos que são localizados na sangha a dar uma direção moral à sociedade budista. Aqui Strenski monta dois argumentos, um concernente à domesticação da sangha e outro concernente à estrutura moral da sociedade budista. Os dois argumentos parecem ser um mesmo argumento porque ele equaciona a distinção entre trocas restritas e generalizadas com a outra 41 A sangha não reciproca necessariamente aos leigos pelas doações feitas (especialmente não com mérito!) mas em vez disto traz benefícios de volta ao doador original. 42 um vetor que dirige o trajetório desejado de uma dada sociedade budista qualquer... adiante no caminho a Nibbana. 31 distinção entre reciprocidades indefinidas e equilibradas43. O primeiro baseia-se no número de partes que participam das relações de toca. O outro se baseia na presença ou ausência de uma expectativa de retorno calculado por um presente que é doado. Cada argumento de Strenski depende de uma destas distinções. Ele considera que as trocas generalizadas conduziram à domesticação da sangha por envolver as comunidades monásticas e leigas em ciclos de trocas; isto é troca generalizada propriamente dito. Ao mesmo tempo, ele considera que trocas generalizadas deixam a doação livre de qualquer cálculo por dar a aparência de sacrifício, que coloca a sangha à parte, mais próximo a Nibbana. Como já foi anotado, não há base em Lévi-Strauss para esta opinião que trocas generalizadas são livres de cálculos. Ainda mais, como Strenski anota, cálculos dos retornos de mérito por dāna dada são um elemento proeminente da folk theory e da prática popular que ele deixa fora de consideração. Por isso, a ligação que ele faz das duas distinções parece contrária tanto ao modelo que ele apela como a]às evidências das práticas do dāna. Strenski não defende com nenhum argumento que as trocas generalizadas são necessariamente livres de cálculos ou que trocas restritas necessitam de cálculos. Ao invés disso, esta visão sobre as trocas parece enraizada numa pressuposição mais profunda sobre a relação entre valores mundanas e religiosas na sociedade budista. Postas as opiniões que Lévi-Strauss tem sobre as trocas, não há nada de excepcional no argumento de Strenski que a sociedade budista é constituída em grande parte por relações de troca generalizada. O mesmo argumento pode ser feito para 43 Pode haver uma confusão aqui entre a “troca generalizada” de Lévi-Strauss e a “reciprocidade generalizada” de Sahlins. Embora Strenski não se refira às idéias de Sahlins sobre a reciprocidade, ele chega a citá-lo concernente um outro assunto (Strenski: 1983, p.470). 32 qualquer sociedade. Trata-se de mais que isto, para Strenski. Ele quer explicar as relações relativamente estáveis entre comunidades religiosas e leigas, entre dois componentes da sociedade budista que parecem localizar dois tipos diferentes de valores. Num sentido importante, relações de troca entre a sangha e a sociedade leiga são relações entre partes desiguais. A troca de dāna por mérito leva para dentro do processo de troca justamente os valores que constituem esta desigualdade. Posto isto, não é de maravilhar-se que Strenski desconsidera o “cálculo calculista de méritos e deméritos espirituais” que ele encontra em folk theory e prática popular; a folk theory deve ser errado porque a sangha teria cessado a existir há muito tempo se tivesse praticado este tipo de trocas restritas calculativas. A visão de Strenski é retrógrada. A preocupação dele com a questão de domesticação começa historicamente com a existência da sangha como um grupo a parte que, por meio de relações de troca generalizada, chega a entrar em relações estáveis com a sociedade leiga. O argumento tem como premissa a separabilidade da sangha como esfera de valores religiosos e a comunidade leiga como a esfera de valores mundanas na sociedade budista. O texto dele enfoca “the problem of the transition from the sangha of the early renouncer community to the national, political and social Buddhism of the south Asian Buddhist middle ages” (1983: 463)44. A solução dele é que what has been labelled ‘domestication’ of the sangha is no more than the condition of the sangha within a system of GX. ‘Domestication’ simply names a process of the sangha’s 44 o problema da transição da sangha da comunidade primitiva de renunciantes ao budismo político e social da idade média budista no sul da Ásia. 33 participation in a certain social solidarity. Thus, if gift-giving to the sangha in the spirit of GX is normal and natural to Buddhism then so also is its consequent domestication. (1983: 471)45 A análise de Strenski obscurece o fato que a sangha domesticada era de um tipo bem diferente da sangha dos renunciantes. Ele vê trocas generalizadas não somente como um processo que levou a sangha e a comunidade leiga para um relacionamento estável mas também como uma qualificação do relacionamento que protegeu a sangha da laicização. Importa reconhecer, contudo, o quanto as relações de troca eram uma fonte de mudança que resultou tanto numa sangha como numa comunidade leiga que diferissem de seus precursores em maneiras importantes. Isto é, mudanças históricas em relações de troca não são somente novas relações entre parceiros que não mudam, mas eles podem alterar a própria natureza destes parceiros. Uma vez domesticada a sangha, valores relgiosos passam a permeiar a sociedade budista leiga, e a sangha cumpre um papel econômico ativo na sociedade. Contudo, não é suficiente imaginar uma interpenetração de esferas, a de valores religiosas e a de valores mundanas, separadas no início ou no ideal. É a forte separação das duas, como foi projetada sobre o processo histórico da domesticação, que leva a dificuldades do tipo encontrado no artigo de Strenski. Se começarmos com um pressuposto inicial que a esfera religiosa é separada e procurarmos uma instância disto na sangha 45 o que foi etiquetado como “domesticação” da sangha nada mais é que a condição da sangha dentro de um sistema de trocas generalizadas. “Domesticação” simplesmente se refere a um processo da participação da sangha numa certa solidariedade social. Desta maneira, se a doação de dádivas à sangha no espírito das trocas generalizadas é normal e natural para o budismo, assim também é a sua domesticação subseqüente. 34 primordial, então a domesticação da sangha torna-se um problema a ser resolvido 46. Se, por outro lado, começarmos com a visão que a sangha e a comunidade leiga sempre estiveram em relações de troca de algum tipo, a questão torna-se não somente a de determinar o quanto estas trocas eram generalizadas ou restritas mas de investigar a natureza exata da interação em contextos históricos específicos enquanto tanto a sangha como a sociedade leiga evoluiu. Se aceitarmos a domesticação da sangha como premissa e perguntarmos como conciliarmos isto com os cálculos populares (folk) de méritos obtidos por dāna doada, então surge um quadro bem diferente. A continuação da existência da sangha já implica que tais trocas de dāna por méritos não conduz a laicização. Strenski parece ter a razão quando diz que a reciprocidade equilibrada de trocas materiais não qualificadas teriam conduzido à laicização da sangha, mas o quadro muda quando o dāna passa a fazer parte do conjunto. A troca de dāna por mérito não ameaça o status especial da sangha. Ao contrário, ela cumpre um papel central em constituir a sangha como exemplar dos valores religiosos da sociedade budista. Isto não é por que a troca generalizada se assemelha ao sacrifício, libertando a doação da esfera dos cálculos, mas por que a troca de dāna por mérito, que é o processo da doação religiosa, continuadamente reafirma e reenforça os valores sobre os quais se baseia a distinção entre a sangha e a sociedade leiga. A sangha e a sociedade leiga são distinguidos em termos de valores religiosos e mundanos, os valores de nibbana e kamma, mas é enganosos dizer que estas esferas de valores são totalmente distintos (Strong: 1990). 46 De novo, o trabalho de Gregory Schopen sugere que a possibilidade de uma hiperdependência de evidências textuais teve este efeito exato, de construir uma imagem idealizada da sangha no relativo isolamento da comunidade leiga, uma imagem que não encontra respaldo nas inscrições e nas outras evidências que são mais indicativas de práticas (Schopen: 1991). 35 Strenski diverge desta visão numa maneira que fica clara num exemplo que ele usa para argumentar que a troca generalizada se assemelha ao sacrifício do ponto de vista da comunidade leiga. Ele sugere que doações à sangha tornam-se problema quando elas são duráveis: terras e mãode-obra foram tirados de circulação geral, criando situações de escassez que conduziram, pode-se argumentar, no caso da Sri Lanka, a uma reforma da sangha. Thus in so far as the sangha did not place its durable wealth sufficiently at the disposal of society at large, and in so far as the sangha refused to enter systems of exchange, it risked these inevitable royal, so-called, ‘purifications’. ... In this sense we may even look at the monastic landlordism of Sri Lanka as a way of escaping the horrors of selling it as fast as it comes to the sangha. (Strenski: 1983, p.475)47 Strenski vê o caso de Sri Lanka como uma via média entre os horrores do engajamento em trocas não qualificadas com a comunidade leiga e o perigo de encorrer em reformas por causa da recusa de entrar em sistemas de troca. Os horrores de vender terras consistiriam, presumivelmente, de laicização. No extremo oposto, a sangha se retira das relações de troca, arriscando reformas que tirem riquezas da sangha para recolocá-las em circulação. Isto é, na visão de Strenski, o processo de 47 Desta maneira, na media em que a sangha não colocou sua riqueza durável suficientemente à disposição da sociedade em geral, e na medida em que a sangha se recusou a entrar em sistemas de troca, ela arriscava as “purificações” reais, assim chamadas, que eram inevitáveis... Neste sentido podemos até considerar o latifúndio de terras arrendadas dos mosteiros (monastic landlordism) de Sri Lanka como uma maneira de escapar os horrores de vender a riqueza no mesmo ritmo em que ela chega à sangha. 36 reformas tira propriedades da sangha quando ela tenta se separar excessivamente da sociedade leiga. Contudo, Stephen Kemper defende que o oposto foi o caso na reforma do monasticismo sinalês: The abuse of wealth by Sinhalese monks has been a matter not of their possessing wealth, which is quite acceptable, but of their using wealth in ways that destroy the distinction between monastic society and lay society. ... [T]he primary impulse of reformation has been to put corrupt monks back on the right course by taking wealth away from them as individuals, but not from the monastic order generally. (1990, p.153,160)48 Strenski assevera que a reforma acontece quando a sangha superenfatiza a sua distinção da sociedade leiga. Kemper assevera que a reforma acontece quando os membros da sangha agem numa maneira que subenfatiza esta distinção. A preocupação básica de Strenski que a sangha e a sociedade leiga representam duas esferas de valores totalmente distintas o conduz a ver a sua relação como baseada na oposição: a sociedade leiga tenta arrastar a sangha para dentro de relações de troca que ameaçam solapar a existência independente dela; a sangha mantém a sua distância da sociedade leiga qualificando (ou generalizando) as relações de troca na medida em que elas se aproximam do casolimite de sacrifício. Para defender esta visão, contudo, Strenski achou necessário passar por cima de práticas do dāna que eram prevalecentes e de longa data. 48 O abuso de riquezas pelos monges sinaleses não tem sido uma questão de eles possuir riquezas, que é totalmente aceitável, mas de eles usar as riquezas numa maneira que escurece a distinção entre a sociedade monástica e a sociedade leiga... O impulso primário da reforma tem sido de recolocar os monges corruptos no caminho certo tirando riquezas deles como indivíduos, mas não da ordem monástica em geral. 37 Isto é, a insistência de Strenski em distinguir dois tipos de relação de troca tem o efeito de distinguir dois tipos de motivação religiosa: a meta de procurar a renascença, por uma troca restrita de bens mundanos por mérito; e a troca generalizada que visa a meta extramundana da nibbana. Contudo, se valores mundanos e religiosos não são tão divorciados uns dos outros, se a procura da nibbana e o desejo de uma renascença melhor de acordo com a operações de kamma são aspectos do mesmo caminho, então dāna oferece a chave para entendermos esta dualidade. John Strong (1990) pontificou assim mesmo: que valores mundanos e religiosos são pouco divorciados uns dos outros no budismo. Ele argumenta que dāna serve para ligar as doutrinas de kamma e nibbana sem contradição e que motivações mundanas e religiosas para dāna são comensuradas: dar para fins de uma renascença melhor e dar para obter o mérito necessário par fugir da renascença não são motivos que se contradizem. O argumento dele depende de uma resolução da tensão entre os direitos obtidos por doações pequenas e grandes, entre o valor respectivo de doadores ricos e pobres. Doações, por mais pequenas que sejam, obtêm mérito se são dadas com a atitude certa, para o recipiente certo e na hora certa. Este mérito resultará numa renascença melhor, o que, por sua vez, fornecerá oportunidades para doações maiores; finalmente renasce-se como um deva, um rei ou figura com características divinas. A meta final deste caminho para um prêmio mundano é nibbana, pois, chegar ao estado real (ou divindade) posiciona uma pessoa para praticar dāna na sua forma máxima: “the renunciation of anything less than devahood would not be a total giving up of the self and hence would not involve a total commitment to the monastic life and the quest for 38 nibbana” (1990, p.118).49 Por isso, a procura da libertação não é contrária à procura de sucesso no mundo mas passa por ele (1990, p.122). Stephen Kemper sublinha visões budistas que o valor da riqueza consiste na sua capacidade de fazer o bem e de permitir o cultivo da virtude do não-apego (1990, p.154). Surpreendentemente, a riqueza não vem par eles que agem de uma forma benemérita, mas, antes, status (rank) vem para eles que ganham a riqueza. Isto tem ramificações importantes no contexto da sangha, onde reis favoreceram especialmente os monges que trouxeram prosperidade para a sangha, entendendo a “prosperidade” como avanços de instrução, de retidão e de ordem social mas também inclui ganhos materiais (1990, p.155). Há uma circularidade nisso que é conhecido aos que estudam o evangelho pentecostal da prosperidade: a riqueza é um meio legítimo para reconhecer mérito, e mérito sinalizase por riqueza. Este tipo de conexão íntima entre riqueza e mérito parece, a primeira vista, totalmente contrário a qualquer escala de valores baseada no alcançar de nibbana. O argumento de Strong pela comensurabilidade de valores mundanos e religiosos, contudo, nos permite a perceber o sentido destas constatações. E nos permite perceber o sentido da constatação de Kemper que o budismo não distingue nitidamente entre os tipos de mérito: The merit that made the Lord Buddha a “great being” could have been used either in the social world as a king or in renunciation as a buddha. The great merit that warrants a young boy’s robing will also serve him in a business or political career.... If ... monks control 49 A renúncia de algo menor que o estado de deva não seria uma auto-entrega completa e por isso não envolveria um compromisso total para com a vida monástica e a procura por nibbana. 39 property and enjoy its revenues, such is not corruption but the proper consequence of their past lives and a legitimate context for their present ones. The issue is the disciplined use of property. (1990: 169)50 A comensurabilidade entre os motivos que são baseados em kamma e nibbana, de valores mundanos e religiosos, correlaciona-se com esta escala única de mérito. Isto tem o efeito de colocar o dāna bem no centro de visões budistas dos valores da ação social: o dāna não se divide entre dois tipos de motivos ou de méritos. Há quatro lições finais nisso para o estudioso da religião. Sétimo, é fácil desperceber a diferença entre distinções conceituais que se assemelham (por exemplo, trocas restritas versus generalizadas ou reciprocidades indefinidas versus equilibradas). Oitavo, análises de grupos religiosos elites ou ortodoxos podem ser dramaticamente diferentes dos que se adequam aos grupos populares ou locais. (Esta observação é semelhante à lembrança para distinguir pronunciamentos normativos de relatos de práticas reais). Nono, mudanças históricas nas relações sociais não são simplesmente novas relações entre participantes que não mudam, mas pode mudar a natureza destes participantes. Décimo, a ligação entre relações sociais e motivações religiosas é mais complexa do que estas três análises sugerem. 50 O mérito que fez do Senhor Buda um “ser grandioso” podia ter sido usado ou no mundo social como rei ou na renúncia como um buda. O grande mérito que autoriza o entogamento de um menino também o servirá uma carreira de negócios ou na política... Se... monges controlam a prosperidade e se beneficiam de suas rendas, tal coisa não é a corrupção mas a correta conseqüência de suas vidas passadas e um contexto legítimo das atuais. A questão é o uso disciplinado da propriedade. 40 Conclusão Nos textos que acabamos de considerar, Heersterman, Thapar e Strenski confiam numa gama muito restrita de práticas do dāna, e cada um impõe pressuposições sobre a natureza da reciprocidade e da troca. Heesterman considera somente o sacrifício pré-clássico e acompanha Mauss em tratá-lo como uma troca material entre iguais. Thapar olha somente no dāna de grande escala que é ritualizado e considera somente casos de relações diádicas entre doador e recipiente. Adicionalmente, ela impõe uma distinção absoluta entre troca de presentes e troca de mercado. Strenski explicitamente desconsidera a prática em favor de teoria e equaciona a distinção entre trocas generalizadas e restritas com a que existe entre reciprocidades indefinidas e equilibradas. Estes problemas com a teoria da dádiva cruzam com um outro problema separado: uma distinção que é absoluta demais entre os valores religiosos e mundanos nas culturas religiosas do sul da Ásia. Esta pressuposta, contudo, como é demonstrado pelos exemplos dos comerciantes jain e hindu e de atitudes budistas para com a riqueza, não reflete práticas de doadores nas tradições religiosas do sul da Ásia. Além das dez “lições” alistadas, há mais duas observações a serem feitas a partir desta análise. Por um lado, as limitações das teorias ocidentais da dádiva conduzem a uma desatenção para elementos centrais às teorias sul-asiáticas da dádiva: dimensões estéticas do dāna, concepções de agência humana mais limitadas e mais voltadas para o outro, e um arcabouço ético adequado para sociedades hierárquicas (Heim: 2004). Por outro lado, e mais importante, o trabalho de interpretação e análise no estudo da religião não é uma questão simples de “aplicar” teoria ou conceitos à fontes ou aos dados. Consiste de um diálogo constante, em que precisamos prestar atenção não somente para 41 os “insights” que o aparato conceitual nos fornece acerca do objeto do estudo, mas também às maneiras em que o objeto de estudo nos força a repensar os nossos conceitos. No caso do dāna e de relações de troca no sentido mais amplo, somos tão aptos a aprender mais sobre as limitações de nossa própria perspectiva como sobre as sociedades que nós estudamos. 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